Fuga Destinada — Contos de Sil Hwioung

Sil Hwioung
5 min readJun 12, 2022

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“Eu não posso voltar a ser quem eu era” Escreveu ela. “ Isso me tortura muito. Tenho medo de que qualquer vacilo que eu dê, qualquer passo, movimento, pensamento ou direção que eu decida tomar, me coloque de volta para o buraco da onde eu sai. Sair de lá me custou suor. Me custou paz. Me custou sangue. Me custou você… E esse preço foi caro demais. Eu já não tenho nada a perder. Só me sobrou nossas memórias. Eu as revivo em sonhos. Minha parte favorita é quando te conheci. O tempo poderia congelar no segundo em que meus olhos cruzaram com os seus. Infelizmente quando tudo me parecia estar indo bem entre nós, eu tive que te deixar ir. Porquê eu tive medo de não te ter mais. E só de ter esse medo bobo eu já sabia que iria perder você para sempre. Porque nunca arrisquei. Nunca me movi. Nunca te fiz feliz. Não me esforcei pra me expressar. Nunca quis lhe demonstrar afeto por puro medo. Mas eu te…”

E a chuva deixou a última palavra, gravada em tinta preta de caneta, escorrer. Ele já sabia disso. Aquela velha carta estava em sua carteira, no compartilhamento mais secreto que ele, David, conseguiu achar. Ele nunca soube o final, porquê fora nessa mesma situação que lhe fora entregue. É claro que ele relia às vezes! No fundo ele já sabia dos sentimentos dela no momento em que seu olhar iluminado foi lhe direcionado. Para ele era extremamente difícil se deixar levar por sentimentos. Mas ele nunca achou que fosse para aquela menina. O que será que ela pensava dele, agora? Já estaria casada? Com uma família formada? Não. Não poderia. Ela era do tipo humanitária. Jamais tirava tempo para si. Sem dúvidas estaria trabalhando em ONGs, ajudando crianças e pessoas em situação de rua ou talvez preservando animais de serem extintos. Logo, ele ainda a conhecia muito bem. Conhecia seus futuros planos. Conhecia os livros e as músicas que ela mais gostava. E isso o assustava muito. Como poderia se lembrar dos mínimos detalhes de alguém que não via tanto há tanto tempo?. Ele nunca pensou que, justo aquela menina que tinha um brilho tão lindo no olhar, pudesse sofrer. Por alguém. E esse alguém era ele. Afinal, aquelas risadas, gostosas de ouvir, bem fáceis de serem arrancadas dela, eram falsas? Por que então disfarçava tão bem a dor, se a estava sentindo?

Enquanto se arrependia amargamente de não ter olhado uma vez se quer para o lado anos atrás, ele estava sentado na mesa, na calçada de uma cafeteria. Olhando um jornal, sem nem estar lendo, deixou que sua mente o levasse para longe. Pensando bem: o que adiantaria ter investido naquela garota sugadora de energia se ele seria pobre no futuro, junto à ela e, talvez, seus quatro, cinco ou seis filhos? Ele jamais seria o dono de uma companhia famosa, com empresas por todo o país, se tivesse perdido tempo com um possível casamento, que nem ele sabia se daria certo.

-Olhe onde sua intuição te levou. É tarde demais para voltar atrás. Se conforme e volte a trabalhar.

E assim, ele tentou parar de pensar em coisas fúteis que não lhe serviriam de nada, como amores e sentimentos, e pregou os olhos de vez no jornal. Estava cheio de notícias trágicas. Às vezes cheios de receitas e dicas de saúde, só para preencher o espaço que a falta de notícias recentes trazia. Mas hoje havia algo de novo na capa do jornal da cidade não tão interessante.

“Autora de um romance de grande sucesso, mulher se destaca no mercado literário e conquista o coração de fãs”.

Havia uma foto de uma bela moça. Com cabelos escuros alisados, uma maquiagem leve e trajes inteiramente pretos que lhe passariam um ar de seriedade, se não fosse pelo sorriso da linda mulher na foto. Ela usava um par de brincos, que, pelos céus!, estava desfocando a aparência obscura que as roupas lhe davam. Um par de brincos com patas de gato com diamantes na parte das unhas. Ele havia uma visto aquilo em algum lugar. Parecia até… Não era isso que ele achava que era. Seria loucura. Áurea jamais estaria usando aqueles brincos bregas que ele lhe dera na noite de formatura do último ano no colégio. David apertou os olhos e viu a capa do livro que a autora, com um pseudônimo, esquisito e anormal, de Aaeru Divad, segurava. Eram letras modernas em vermelho numa capa preta fosca. Havia alguns rabiscos de desenho e o pedaço de uma carta escrito algo. “…te amo, e sempre amarei, D.” David congelou. Mas o que diabos era aquilo? Parecia que lhe era familiar. De repente. A carta, a letra, o livro e a dona dele. Qual seria a chance de comprar um jornal informando o sucesso de alguém que ele não via há anos? David abafou um sorriso. Seria engraçado demais se fosse verdade. Porém, não era. Talvez Áurea já nem tivesse mais entre os vivos.

Talvez tudo aquilo fosse paranoias dele. Por qual razão ele se interessaria nela se não fosse aquilo apenas fruto de sua imaginação? Se ele tivesse realmente sentido algo por Áurea ele teria lhe contado. E, certamente, não ouvido aquela confissão de amor e fugido para longe, evitando até cruzar com ela nos lugares.

Se David não tivesse ignorado a chance de se dar bem no amor, ele talvez, não teria se dedicado o suficiente para ter o que tinha: sua influência, seu status, seu trabalho, dinheiro… E pensando bem, fora melhor assim. Ao menos isso ele tentava se convencer.. De repente ele riu diante de tamanha tolice. Sozinho naquela mesa de café. Ele riu alto. Até alguma coisa lhe acertar o braço, derrubando sua xícara de café em sua calça. E nela, estava sua carteira?!

- Mas que droga você acha que está fazendo?- ele embraveceu.

- Me desculpe senhor.

Ele acenou no ar para que a pessoa se calasse, sem nem sequer olhar para cima. Espiou com cuidado o conteúdo de sua carteira e ali estava o que temia: sua carta, que Áurea, irritantemente, lhe escrevera, estava molhada de café. Havia apagado metade da tinta da caneta. David segurou um choro e olhou com ódio para a presença do desastre ambulante à sua frente. Ele se arrependeu do olhar de ódio instantaneamente. E de estar ali, com toda certeza, também.

- Eu tenho a cópia desta carta que escrevi. Essa eu sei de có. Está no livro que eu lancei, afinal de contas. — a suave voz daquela mulher lhe preencheu a alma. E junto disso, todas a lembranças, todos os sentimentos guardados para si, todas as sensações que uma vez a moça lhe despertou, pareceu voltar como uma enxurrada.

David observou Áurea, incrédulo e se encontrou incapaz de falar qualquer coisa. Alguém estava a brincar com ele. E esse alguém era impossível de se esconder e evitar. E ele tinha total e plena consciência disso. Não havia como fugir das linhas que já havia caminhado por cima. Era algo capaz de deixar sem palavras, a mais falante das pessoas. Capaz de deixar sem saber o que fazer, com medo de arriscar, a mais corajosa das almas. Esse algo impossível de fugir ou se esconder, era o destino. E era exatamente isso que David estava vendo naquele momento na frente de seus olhos. O maldito destino se encarregou de colocar no mesmo caminho, — aquilo que já estava escrito para ser, — e que era dele por direito.

Xd

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Sil Hwioung

Viajando na imensidão do meu eu interior que não gosta de aparecer muito.